quarta-feira, 10 de março de 2010

Seminários Internacionais Museu Vale 2010



O Curador da Fundação Eva Klabin, Marcio Doctors, participou do Seminários Internacionais Museu do Vale 2010 - Do fundo abismo nascem as altas montanhas ou: de como superar uma crise, realizado no Museu Vale, Vilha Velha, Espírito Santo, de 3 a 7 de março de 2010.

Confira o texto da palestra apresentada:

Dissonâncias e novas utopias[i]

Márcio Doctors
[Curador da Fundação Eva Klabin e do Espaço de Instalações do Museu do Açude]

Dedico este texto para minha mulher, a artista visual Claudia Bakker, tecelã de meus desejos, e para meu amigo filósofo James Bastos Áreas, que me ajudou a pensá-lo.

É o real que se faz possível e não o possível que se torna real.
Henri Bergson

Sempre me intrigou o termo arte contemporânea como definição da arte que se faz hoje. Qualquer época produz a sua própria contemporaneidade. Por que, então, a nossa arte seria mais contemporânea a nós do que aos contemporâneos da arte produzida em outros períodos históricos do passado? O que aparentemente poderia ser o desejo de um ajuste perfeito – um encaixe de intencionalidades entre o fazer e o ser em um mesmo tempo histórico – ressoa em mim como um descompasso. Por que necessitamos afirmar para nós mesmos que aquilo que fazemos nos é contemporâneo?

Essa indagação me levou a refletir sobre se é possível anunciar a verdade de uma arte que se encontra com a verdade do próprio tempo, enquanto ela está acontecendo; se essa concomitância é possível. Por que necessitamos, para dar conta da arte que é produzida hoje, importar para a nossa atualidade uma visão mais afeita à profundidade do tempo histórico, que nos permite a distância necessária para reconhecer a inevitabilidade do que foi? Que pretensão é essa que nos permite acreditar estar de posse das rédeas do tempo e importar para o presente o sentido que só o olhar do futuro é capaz de derramar sobre o passado e anunciar a “verdade” artística de uma época? Por que nos julgamos capazes, ou melhor, por que necessitamos ou nos permitimos pensar que a arte produzida hoje é por definição contemporânea ao seu próprio tempo e a nós mesmos?

Tateio uma possibilidade de resposta para essas indagações, olhando de forma desconfiada para a ideia de uma arte que se pretende contemporânea ao seu tempo. Em outras palavras, desconfio de que, mais do que uma realidade consolidada, a ideia da arte contemporânea é mais a impossibilidade de darmos conta de nossa atualidade. Isto é, por não nos sentirmos capazes da “virtude” da atualidade, ou confortáveis com nossa condição atual, nos iludimos, acreditando na possibilidade de sermos contemporâneos de nós mesmos. Nosso desejo é expressão da nossa falta: é expressão de nosso desconforto.

Ao enunciarmos para nós mesmos que a nossa arte é contemporânea estamos nos dizendo que não somos capazes de produzir uma arte que se adéque ao próprio tempo (ao próprio presente) porque sentimos que perdemos o domínio do tempo. Estamos enunciando que desejamos uma arte que seja contemporânea ao seu próprio tempo porque almejamos a verdade e o sentido unívoco de uma época, que sabemos não sermos mais capazes de realizar. Portanto, a ideia de uma arte que se anuncia contemporânea traz consigo implícita uma impossibilidade de consumação de sua própria enunciação: de uma adequação entre ela e o seu próprio tempo.

Mas antes de continuar a desenvolver minha linha de raciocínio, faço uma interrupção para dizer que assim que fui convidado a participar deste seminário e fui informado do título: Do fundo abismo nascem as altas montanhas ou: de como superar uma crise, ocorreram-me duas imagens mentais que gostaria de apresentá-las porque são imagens que acompanham o meu pensamento na tessitura deste texto e podem nos ajudar na compreensão do escopo da minha reflexão. Uma delas se encontra mencionada em vários de meus textos e a outra, mais recente, me referirei a ela pela primeira vez aqui.

A primeira é a imagem de um sonho recorrente que tenho de um cego à beira de um abismo, tateando a profundidade do precipício com sua bengala.

A segunda extraí de um pequeno conto de Borges: “Os dois reis e os dois labirintos”.[ii] É a imagem de um deserto. O conto trata de um rei das ilhas da Babilônia, que juntou todos os seus arquitetos e magos para que construíssem um labirinto tão engenhoso e sutil que aquele que se aventurasse a entrar nele se perderia. Passado um tempo, este rei recebeu a visita de um rei dos árabes, e por fazer pouco caso da simplicidade de seu hóspede, o convidou a entrar no labirinto que tinha mandado erguer. O rei dos árabes se perdeu, se desesperou e pediu socorro divino e encontrou a porta de saída. Ele não reclamou de nada e apenas disse ao rei da Babilônia que na Arábia ele tinha um labirinto melhor e que, se algum dia ele viesse visitá-lo, ele o apresentaria. Voltando à sua terra, o rei árabe juntou o seu exército, invadiu a Babilônia, fez o rei dos babilônios cativo e o levou para que conhecesse o seu labirinto. O amarrou em cima de um camelo e foi para o deserto. Cavalgaram três dias, e o rei dos árabes disse ao outro rei que o labirinto que ele conheceria não tinha escadas de bronze, nem muros, nem portas ou barreiras. Em seguida soltou as amarras que prendiam o rei e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede.

Essas duas imagens são tradução da minha percepção de nossa condição atual. Somos como os personagens do meu sonho e do conto de Borges: ou somos como cegos à beira do abismo, tateando com a bengala o próximo passo que pode ser a queda no precipício; ou somos mentes muito sagazes, que acreditamos ter criado uma estrutura técnico-científica muito sólida para nos proteger de nós mesmos ou dos outros (como o labirinto da Babilônia), mas que nos tornamos indefesos quando não temos onde nos apoiar, como na imensidão da planície desértica, sem limites ou fronteiras (como o labirinto do rei árabe). Tanto o abismo quanto o deserto nos põem frente a frente com a nossa condição atual: a precipitação do desconhecido e do que escapa do nosso controle.

O homem contemporâneo vive na incerteza. A velocidade e a fragmentação do tempo, as novas formas de trabalho e de consumo e a consciência da degradação do meio ambiente impedem qualquer relação mais estável com nossa realidade imediata, gerando uma sensação de incompletude. A falta que isso ocasiona produz um sentimento de não pertencimento, gerando a necessidade de afirmarmos para nós mesmos que somos contemporâneos de um tempo que nos escapa e que desejamos que não nos escape mais.

Minha indagação inicial reflete uma perplexidade diante da confiança e do orgulho implícitos na ideia de estarmos produzindo uma arte que se pensa e se preocupa em ser contemporânea ao próprio tempo, ao mesmo tempo em que é possível constatar uma falência dos caminhos do mundo; uma situação de crise, contida no título deste seminário, que propõe também que sejam buscadas saídas e soluções. Portanto, parece-me inevitável tratar da crise da arte antes de buscarmos sua superação.

Gostaria, porém, de esclarecer que não acredito propriamente que estejamos atravessando uma crise nas artes. Ao contrário, penso que existe insatisfação ou resistência, por parte da maioria das pessoas, em aceitar que as premissas daquilo que aceitávamos como arte, até os anos 50 do século XX, mudaram. Daí a dificuldade em se relacionar com o que hoje é produzido no universo das artes visuais. Resumindo meu pensamento, diria que o mundo atravessa uma crise, mas que a única força capaz de superar essa crise é a arte, que a meu ver nunca esteve tão potente, apesar da sua relação com o público estar debilitada. Por isso, para que possamos nos aproximar dos novos fundamentos da arte precisaremos retraçar rapidamente a origem daquilo que supomos ser uma crise.

A origem da crise pela qual passamos tem seu início na crise da representação inaugurada pela arte moderna. A modernidade esgotou as possibilidades formais da Renascença. O modernismo é a consumação do projeto renascentista, mesmo que tenha se colocado historicamente como antagonista dos cânones renascentistas. Na realidade, o artista da Renascença se propõe a pintar o que sabe das coisas e não o que vê. Ele usa o seu conhecimento da realidade e a sua imaginação para criar no plano a ilusão da realidade. Portanto, sua estratégia é a de um prestidigitador que tem a capacidade de nos iludir através de um domínio técnico que o capacita para criar a sensação da profundidade no plano, replicando a sensação que temos no mundo, que é tridimensional.

Ao desmontar o esquema da representação naturalista clássica, a arte moderna, no seu início, a partir de Manet, se volta, assim como todos os saberes da segunda metade do século XIX, para uma experiência de um discurso que se dobra sobre si mesmo. Em outras palavras, os artistas daquele período passam a se interessar pelo que caracteriza eminentemente a linguagem visual. Buscam os pontos de irredutibilidade como, por exemplo, entre outros, na pintura, o plano, a cor, a pincelada; no desenho, a linha, e, na escultura, o volume e a tridimensionalidade.

O que caracteriza a arte moderna, do impressionismo ao expressionismo abstrato americano, passando pela sucessão de “ismos” do início do século XX, é a busca cada vez mais acentuada desses tópicos de irredutibilidade, a tal ponto que foi produzido um esgotamento desse percurso. A partir dos anos 50 do século XX, o discurso das artes visuais estava tão voltado sobre si mesmo e distante do mundo, que foi produzida uma “implosão”, desencadeando uma inversão na relação tradicional de contemplação da arte. A arte deixa de ser objeto de contemplação para romper as barreiras que a separavam da vida. De certa maneira ela recupera a relação com a exterioridade, que a representação naturalista garantia através da verossimilhança da imagem representada, só que agora, ao invés de termos a obra de arte como intermediária, que separa o universo da arte do universo da vida, estabeleceu-se uma relação direta, sem intermediação entre os universos da arte e da vida. Uma nova relação de proximidade.

Para efeito de exemplificação cito David Nash, que aborda essa questão de maneira bastante clara, quando analisa a land art, e afirma que: o termo “paisagem” é como “retrato”. É uma expressão de distanciamento: aqui estou eu e ali está ele. Mas o que tem acontecido nos últimos vinte anos (este texto foi publicado em 1998) é que os artistas têm chegado diretamente lá, dizendo não, não é lá fora. É aqui. Queremos fazer nossas imagens com o que está aqui – aqui. Daí ser denominado land art (arte da terra) e não landscape (arte da paisagem); “escape” denotando distanciamento.[iii] Da mesma forma encontramos a quebra dessa distância com os artistas pós-neoconcretos, quando, rompendo a moldura do quadro, mergulham nas potências da vida, interferindo diretamente na realidade do mundo e aliando-se ao fluxo da existência, como na obra de Hélio Oiticica. Ou ainda na pop art, quando somos desafiados por Andy Warhol a distinguir entre uma caixa de Brillo Box, vendida em supermercado, de uma caixa de Brillo Box exposta numa galeria como objeto de arte, requalificando o gesto duchampiano do ready-made.

Gostaria de observar que o processo das artes visuais, assim como o das artes de um modo geral, é movido pelo paradoxo. O paradoxo é a chave de acesso que temos para entender o intricado desenvolvimento da história da arte, que não se dá de forma linear, mas de maneira trançada, o que possibilita uma estrutura de múltiplos sentidos, que como num estuário, as águas de um rio alimentam outro em uma cadeia de sucessivas impregnações. Por isso, muitas vezes o caminho da história da arte retorna a si mesmo, trazendo mais a frente questões que foram semeadas anteriormente e que podem ser paradoxais. Cito este esquema de pensamento porque nos pode ser útil para entendermos a situação atual. Da mesma forma que me referi à arte moderna como a consumação dos ideais renascentistas, no sentido de estabelecer um campo crescentemente autônomo para a arte, mesmo que isto tenha levado à desconstrução da ideia de representação, que era o vértice da Renascença, e por isso mesmo transformando a arte moderna em manifestação distinta e autônoma da arte da Renascença; da mesma forma, a arte contemporânea representa a consumação de outro ideal renascentista, tal como foi enunciado por Leonardo, da “arte como coisa mental”, a tal ponto, que desconstruiu a ideia da arte.
Arthur Danto, no seu livro Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história, não aborda essa questão da mesma maneira como me referi acima, mas faz uma análise que acrescenta de forma produtiva o entendimento do novo patamar que a arte se encontra hoje, que reputo brilhante:

Para mim, uma vez que a própria arte destacou a verdadeira forma da questão filosófica – isto é, a questão da diferença entre obras de arte e coisas reais –, a história chegou ao fim. O momento filosófico havia sido atingido. As questões podem ser exploradas pelos artistas que nela estão interessados, e pelos próprios filósofos, que agora podem começar a fazer a filosofia da arte de um modo que produzirá respostas. Dizer que a história acabou é dizer que não há mais um limite da história além do qual as obras de arte possam cair. Tudo é possível. Qualquer coisa pode ser arte. E em razão da situação presente ser essencialmente desestruturada, a ela não se pode adequar mais uma narrativa mestra. Greenberg está certo: nada aconteceu durante 30 anos. Essa é talvez a coisa mais importante a ser dita sobre a arte dos últimos 30 anos. Mas a situação está longe de ser desoladora, como implicava o grito “Decadência!” de Greenberg. Em vez disso, ela inaugura a mais ampla era da liberdade que a arte já conheceu.[iv]

Danto traz uma resposta genial ao aparente impasse que estamos vivendo, primeiro ao demonstrar que a necessidade de estabelecer a diferença entre obras de arte e coisas reais, introduzido pela arte contemporânea, fez com a arte atingisse o que ele chama de “momento filosófico”. Realmente, o sentido profundo da arte se desprende de qualquer foco material. O que importa é mais a capacidade de articulação de sentido (por isso filosófica) e menos o que é possível fazer com o limite da matéria tal como proposto pela arte moderna. Evidentemente, que também na arte moderna, assim como na tradição renascentista, há produção de sentido, mas a diferença é que o sentido é uma decorrência que sustenta a proposição da arte de um momento e de outro, e não a sua razão de ser como na arte contemporânea.

A arte contemporânea, ao se aproximar da exterioridade do mundo, o trouxe para a interioridade do convívio da arte, quebrando as barreiras que foram claramente estabelecidas, a partir da Renascença, do que é arte e do que são as coisas reais do mundo, fazendo com que a arte e as coisas reais adquirissem um novo estatuto de realidade, a saber: tanto a arte passou a ser tão real quanto as coisas reais, quanto as coisas reais passaram a ser tão fantasiosas e imaginativas quanto as coisas da arte. Ao contrário do que mais comumente é aceito hoje, o rompimento do limite entre arte e vida não foi um caminho de mão única, foi uma via de duas mãos. A tecnologia, o mundo da informação e a realidade virtual impregnaram as coisas reais com a dimensão ficcional da arte; da mesma forma a arte foi impregnada de um sentido de radicalidade do real, que só encontramos paralelos nos momentos em que não se tinha consciência da arte como tal, como na pré-história, no Egito antigo ou no período medieval, em que a “arte” atendia ao mundo mágico e religioso.

Para fecharmos esse raciocínio, gostaria de destacar que na visão do paradoxo como a estrutura insidiosa do movimento na arte, o momento atual valida a ideia de Leonardo da “arte como coisa mental”. Estamos vivendo a consumação da proposta renascentista de que a arte é eminentemente uma elaboração mental. Mas, ao mesmo tempo, estamos descobrindo um sentido radical de liberdade nunca antes imaginado ou vivenciado, que estava embutido no projeto da arte moderna, pelas experimentações que se permitia com a matéria, cuja consumação se deu no momento em que a arte rompeu com os limites entre a arte e a vida. Mário Pedrosa anunciou esse momento, com a precisão que lhe era característica, como “exercício experimental da liberdade”.

Vislumbro no “exercício experimental da liberdade” uma possibilidade real de ver nascer do fundo do abismo as altas montanhas. Mas não devemos abordar essa ideia de maneira isoladamente romântica, devemos manter no nosso horizonte a lembrança de que o ideal romântico e o ideal realista andam lado a lado e permeiam toda a estrutura de constituição da arte a partir do século XIX. Não podemos deixar de lado esse fato e devemos usá-lo a favor de nosso pensamento no sentido de que a radicalidade de real, que o realismo desejava conquistar para a arte (que conservava na arte a dimensão da vida), só foi possível graças ao ideal romântico de se atingir um mundo mais sublime. Foi essa pulsão que moveu Mário Pedrosa e nossos artistas pós-neoconcretos, que ao desejarem libertar a arte de sua condição apartada da vida, exercitando dessa forma o ideal realista, desejaram também potencializá-la a ponto de transformar as relações da própria vida, exercitando assim o ideal romântico.

Realismo e romantismo têm balizado e conduzido os desdobramentos da arte e ainda vejo neles o substrato da força espiritual da arte capaz de superar a não espiritualidade dos tempos atuais, tal como descrito por Andrej Tarkofsky que acreditava que estávamos atravessando, na segunda metade do século XX, uma crise da sociedade e não da arte, que, segundo ele, “(...) é sempre chamada para ultrapassar a não espiritualidade e é capaz de, com meios espirituais, verificar a falta de espírito, tal como Dostoievski mais ou menos fez, ele que foi um dos primeiros que soube descrever a doença do início do século, de modo genial.”[v] Apesar de Tarkofsky ter uma visão negativa das artes plásticas e de vanguarda da segunda metade do século XX, ele consegue enunciar e investir na capacidade espiritual da arte, como a força capaz de superar a falta de espiritualidade, que caracteriza nosso tempo e que descreve como uma doença, da mesma forma que Dostoievski fez no início do século XX.

Aprecio muito esse pensamento de Tarkofsky porque não se esquiva de ver frente a frente a crise que atravessamos, que descreve como uma crise de não espiritualidade da sociedade, e encontra sua saída na força espiritual da arte. Identifico-me com a sua constatação, que para mim é a mesma constatação de que somos como cegos à beira de um abismo ou de corpos perdidos no labirinto do deserto, e de que esta é uma crise da sociedade; e identifico-me também com a sua resposta de que a arte é a força capaz de verificar com meios espirituais a falta de espírito de nossa sociedade. Mas me reservo uma pequena dúvida devido ao caráter acentuadamente romântico de sua constatação; há um investimento em uma dimensão sublime que meu pensamento não comporta mais. Não que não veja saída para a crise, ao contrário, vejo que a saída está na arte, assim como Tarkofsky, mas que temos de acentuar sua dimensão realista e recuperar a radicalidade embutida nessa ideia, tal como proposto por Mário Pedrosa, ao enunciar a arte como exercício experimental da liberdade.

Espírito, tal como proposto por Tarkofsky, e a experiência, tal como proposto por Mário Pedrosa, divergem no que localizo de “antecedência”. O espírito antecede a realidade, e a experiência é concomitante com a produção de realidade. O espírito tarkofskiano investe numa ideia de que ele antecede o real, de que ele é maior e mais poderoso do que a realidade, e vem para salvá-lo, enquanto a experiência em Pedrosa investe na ideia de que o real cria a sua própria condição de possibilidade, tal como proposto por Bergson no seu texto “O possível e o real”, quando afirma que: “É o real que se faz possível e não o possível que se torna real”.[vi] Só que Mário Pedrosa não crê na arte como espiritualidade. Essa distinção é fundamental para entendermos o que se passa hoje no universo das artes visuais.
Minha reflexão me encaminha para acreditar que tanto Mário Pedrosa quanto Tarkofsky estão certos e que devemos aproximar seus pensamentos e entender que o exercício experimental da liberdade é o próprio espírito. É o compromisso com a constatação de que a arte é a energia que lida de forma direta com a experiência mutante do real e que a consciência desse processo incessante de mudança é o que faz da arte a reserva espiritual da sociedade.

Toda ditadura se caracteriza e se iguala na incompreensão da diferença, da mesma forma que o consumo e a economia estabelecida, hoje, buscam a identidade do que não se difere, na produção da repetição do mesmo, para tornar-se mais eficiente. Entendendo-se eficiência por mais lucro. Mas isso também já está sendo posto em questão pelo desequilíbrio do meio ambiente e pela certeza da insatisfação que o modelo atual está impondo às pessoas na ordem do tempo e do trabalho. Por outro lado, coube às artes visuais o desafio de debruçar-se sobre o mistério, que não é outra coisa senão a precipitação da diferença incontrolável do real. A explosão de experimentação da produção da diferença levou a uma percepção de que tudo e qualquer coisa é possível nas artes visuais, o que confunde e desnorteia aqueles que não lidam diretamente com o processo inventivo das artes. Mas é essa experiência que tem penetrado insidiosamente na estrutura produtiva e requalificando a ideia da diferença, ainda que de maneira reducionista, como o motor de revitalização da economia.

Mas o importante para nós, neste momento, é perceber que, de fato, para as artes visuais, tudo é possível. Entretanto, essa possibilidade de possíveis não é descolada da realidade, no sentido de que haja um diletantismo que experimenta por experimentar. O real que se faz possível é a experiência radical da liberdade. Essa é uma maneira de lidar com a realidade que ainda não conseguimos absorver tranquilamente porque não estamos habituados a conviver com a consciência radical da diferença, apesar de ter sido sempre assim. A diferença é que estamos vivendo a consciência dessa experiência, e as artes visuais são o local onde está sendo exercitada essa experiência.

A arte contemporânea não deveria ser assim denominada por ser contemporânea ao próprio tempo. Ela deveria ser denominada contemporânea por, ao se fazer presente, ao se fazer real, estabelecer sua possibilidade. Daí surgiu a minha desconfiança original da denominação de contemporânea para a arte que se faz hoje. Se entendermos contemporânea como uma questão temporal não perceberemos que o fulcro da questão é que a arte que se faz hoje rompeu com o esquema metafísico tradicional de ato e potência. Ao se impor como experimentação e não recuar diante do devir, ela deixa de ser arte visual para ser arte da presença. Em outras palavras, o exercício experimental da liberdade lhe permite, ao se tornar presente, inverter os termos tradicionais de que só se transforma em ato aquilo que já é em potência, evidenciando que não há uma condição de pré-existência para o vir a ser, que ser (se tornar presente) é tão radical que determina a sua atualidade dispensando sua genealogia passada ou sua projeção futura, fulgurando na sua própria atualidade; sua contemporaneidade.

Viver na pura atualidade, na explosão do momento, é se permitir a experiência radical da liberdade, que se faz exercitando a experiência da liberdade. Dessa forma a liberdade deixa de ser um livre arbítrio, passando a ser condição de existência. Viver a experiência radical da liberdade é ameaçador porque é lidar com a imprevisibilidade como condição do real. Nunca sabemos, de fato, o que nos espera; só depois de termos vivido é que sabemos o que nos esperava. Jamais saberemos o que teria sido o que não foi. Portanto, colocar-se na posição radical do momento que nos é contemporâneo é colocar-se na posição do exercício experimental da liberdade. Não há permissividade porque se aceita a liberdade como fundamento do que existe. As artes visuais, ou as artes da presença, ao se tornarem possíveis criam uma manifestação plural capaz de se igualar aos múltiplos campos da matéria, por isso elas hoje se manifestam em todas as áreas do fazer artístico, do sonoro à criação de novas paisagens reais, como na música e na land art, da performance às instalações, reinventando o próprio espaço, como no teatro ou na arquitetura, de pinturas às roupas ou aos banquetes, como na tradição das artes plásticas ou na moda e na gastronomia.

Não podemos recuar diante de um momento tão rico da arte, cuja maior força é nos colocar frente a frente com a radicalidade do real, que não é outra coisa senão a compreensão e a percepção de que é o real que se faz possível e não o possível que se torna real, como nos mostra Bergson. A importância dessa inversão de termos que a arte contemporânea permite faz com que a liberdade deixe de ser um valor abstrato e transcendente para experimentá-la como valor real e imanente. Não concordo que estejamos depois do fim da história, como quer a pós-modernidade em arte. Não se trata de atingir o espírito depois do fim da história, no sentido hegeliano. Mas de perceber um mecanismo que sempre esteve presente e que nossa inteligência acobertava pela necessidade de extrair um sentido de constância e estabilidade para uma realidade da natureza que se apresenta inconstante e instável. O momento atual da arte faz emergir a possibilidade da multiplicidade não porque tudo já foi realizado, ao contrário, essa possibilidade existe porque estamos experimentando a consciência e não a inteligência de que a liberdade e a indeterminação são elementos constitutivos do real e não uma opção entre possibilidades. O nosso drama não é escolher, mas se defrontar com um mundo que trouxe para a superfície do real a liberdade e a indeterminação que o funda. E isso se tornou possível porque a virtualidade deixou de ser um espectro da realidade para ser parte da nossa realidade.

Vejamos como Bergson vê a indeterminação e a liberdade:

O erro das doutrinas – bem raras na história da filosofia – que souberam abrir espaço para a indeterminação e para a liberdade no mundo foi o de não terem visto aquilo que sua afirmação implicava. Quando falavam de indeterminação e liberdade, entendiam por indeterminação uma competição entre possíveis, liberdade como uma escolha entre possíveis – como se a possibilidade não fosse criada pela própria liberdade! Como se toda outra hipótese, pondo uma ideal preexistência do possível ao real, não reduzisse o novo a ser apenas um rearranjo de elementos antigos! Como se não devesse ser levada assim, cedo ou tarde, a tomá-lo por calculável e previsível! Aceitando o postulado da teoria adversa, introduzia o inimigo no reduto. É preciso aceitá-lo: é o real que se faz possível e não o possível que se torna real.[vii]

A inversão proposta por Bergson, que determina a causa pelo efeito, é uma revolução libertadora no sentido mais promissor da palavra. Desobstrui os canais da inteligência e do conhecimento, criando uma realidade possível a partir dos mecanismos da arte, que lida com a liberdade do indeterminado como fundamento do real. A importância da arte contemporânea não é que ela seja pós-histórica e que esteja realizando de novo tudo que já foi realizado. A sua importância é que ela se propõe a entender os mecanismos da realidade a partir de uma experiência radical de liberdade, como fundamento e não como escolha. Por isso não vejo crise na arte. Ao contrário, vejo crise na estrutura de nossa sociedade, na política e na economia, incapazes que são de lidar com o indeterminado e a liberdade. A arte não é libertadora, isso é uma mistificação. A arte é exercício de liberdade. Daí a sua força como modelo possível para nos conduzir para fora da crise da atualidade que é, antes de mais nada, uma crise da falta de espírito das sociedades contemporâneas.

Notas
[i] Tive muitas dúvidas a respeito do título que daria a este texto. Optei por “Dissonâncias e novas utopias” porque gosto da imprecisão que contém e do ritmo um tanto trôpego do encadeamento de minhas ideias, que a meu ver provocam dissonâncias que me surpreendem. E também porque tenho um desejo secreto que surjam novas utopias, que o fim da modernidade se orgulhou tanto em anunciar e que me desagrada porque sempre busquei combater o niilismo. Acredito que a arte moderna se esgotou, mas não acredito que o que estamos vivendo seja necessariamente um esvaziamento. A vida nunca para.
[ii] “Los dos reyes y los dos laberintos”. Em Jorge Luis Borges. El Aleph. Buenos Aires: Emecé Editores, S.A., 1974, p. 139-140.
[iii] William Malpas. Land art – earthworks, instalattions, environments, sculpture. Kidderminster: Crescent Moon Publishing, 1998, p. 5-6.
[iv] Arthur C. Danto. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus, 2006, p. 127.
[v] Andrej Tarkowsky (1989) apud Rui Chafes. Würzburg Bolton Landing. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.
[vi] Henry Bergson. “O possível e o real”. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins fontes, 2006, p. 119.
[vii] Henry Bergson. Op. cit., p. 119.

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